4.6.13

porvires

Há algo no meu futuro que não me agrada. Decididamente, o meu futuro não me agrada. Mas inexorável, já está ali, enraizada na prole do meu fado. Meu futuro não me agrada. Inconstante, postado sobre a mesa de mármore, fria e descoberta, na sala de jantar, para qualquer um consumir. Inibe os que se sentam para os dejejuns matinais. Aberto para todos como os faróis para os carros, um cardápio enfadonho dos meus porvires, estendido sob o julgo das pessoas. Às convoco à pitacos de opinião, não me incomodo. Uns avaliam com desesperança, me rotulam, concebem uma vida de pormenores e de experiências não dignas que vivenciarei. Outros me tratam com anedotas, felicitam-me, entusiasmam-se com minhas desventuras posteriores àquele momento. Mas, não se confundam, não sou uma escritora moribunda, tampouco uma moribunda escritora, como já fora pronunciado certa vez, aliás, não se trata de um óbito. Estou bem viva, e está é minha vida, que ainda acontecerá.

De todos os causos e acontecimentos por quais irei passar, decerto, o verão de 2023 será o mais peculiar e instigante de toda minha póstuma vida. Viajarei para Maldonado, num vilarejo camuflado nos confins ínfimos do Uruguai. Hospedarei-me em um chalé, simpático, mas brega, daqueles que soltam fumaça pela chaminé, cercado por vastos campos de milho, como nos clichês mais vis dos filmes água-com-açúcar. Conhecerei muitas pessoas, dos mais diversos tipos, e cores.

Manfredo, um velho ranzinza com cheiro de fumo, colombiano, ex-rebelde, do tipo veterano de guerra, que nada fará em sua velhice sonolenta, a não ser se sacudir em sua cadeira feita de aroeira e fumar seu velho cachimbo, reclamando, reclamando. Também, uma venezuelana promíscua, das pretas mais sensuais que chegarei a conhecer nas minhas andanças mundanas. De nome Consuelo, leviana nas ideias, pontual nas ações, de quem saberei todos os segredos mais íntimos que uma rapariga conseguirá confinar-se. Embriagar-me-á, incansavelmente, com seus monólogos permeados por peripécias de puta vivida.

Mas nenhuma das personas que chegarei a conhecer me açoitará tanto quanto o cinismo afetado e fascinante de Sebastian. Um argentino, intelectual e cafajeste, dos hermanos mais inconvenientes que perseguirão meu inconsciente nos anos porvir. Um nômade de trejeitos pueris. Quando não o verei perambular pelas hortas que cercam o chalé, escondida nas seringueiras, vigiando-o, feito um carteiro levando o mundo a outras pessoas, ou em cima de uma jabuticabeira dispondo-se com o tempo, desgastando sua paciência abastada de ócio, o perceberei em meio à suas ávidas leituras, regadas à tiques e café.

Ele não me dará trela, e isso me incomodará, e muito. O usarei como os quadros de pintura abstrata, tentando entender, desvendar, desconstruir seus traços, suas pinceladas. Com dotes latinos encantadores, fará delirar qualquer donzela que ousar cruzar seu caminho, e eu, não tão diferente das púberes, não conseguirei permanecer inerte aos seus encantamentos.

Confesso que, de certo modo, minha patologia em relação a Sebastian extrapolará a barreira do racional, e somente se agravará com os demais dias que ficarei hospedada no chalé. O desfecho é o que mais surpreende as pessoas que consumem meu futuro. Mas, de que vale me debruçar, nos debruçarmos, nos percalços que ainda estão por vir?

De imediato, cesso a leitura do vindouro, traço um nó para que não se abra mais. E com o perdão do pleonasmo, deixo o futuro para depois.

1.6.13

amarillo


Meu coração parou duas vezes durante minha vida. Em 1992, durante uma má transição do fluxo na corrente sanguínea. Corpo hedonista e cardiologista disputaram palmo a palmo meu miocárdio: enfartei.
A primeira pausa ocorreu quase trinta anos antes em Santiago do Chile, quando vi Maga. Lembro-me de seus olhos tremeram e baixaram antes de se postarem frente aos meus. Recompuseram-se rapidamente, um costume magnífico que tardei a dominar.

Magali vestia um casaqueto amarillo, a palavra que os espanhóis usam para nomear a cor que vibrava como o sol. Firme, solene, e encurralada por duas tias velhas, na missa dominical. Devíamos ter nossos dezesseis, dezessete anos, e, apesar de minhas tendências religiosas terem sido consumidas durante a estadia no acampamento dos padres, freqüentava a paróquia.

Debrucei-me no banco de cimento. O peito me escapara um pouco: nunca tinha avistado garota tão singular na brevidade dos meus dias. As cores dos cabelos de Maga beijavam o mundo quando soltos. As bochechas coradas, sem pó de maquilagem, e seu nariz reto em nada surpreendiam, em nada completavam-se. A estética vinha de dentro. Desabrochava na superfície amarela do casaco, feito a lenda da flor amazônica sobre os lagos indígenas.

Despi-me de minha rotina. Segui-a por todos os cantos nas férias de 1963. Saberia enumerar com precisão suas frutas preferidas nas feiras de rua. Abacaxi, tangerina e uvas. Quantas vezes visitara Paulina, a vizinha da avenida paralela à minha casa. 12. Decorei cada nota de rock que saía de seu quarto. Love, Love me do.You know I Love you. Tomei-a para mim.

Aquele domingo e os conseqüentes trataram de adequar-se a minha educação sentimental. O nome terminado em “o” certamente fora a primeira sacada irônica do destino sobre mim. Nada tenho do Romeu shakespeariano, minha abuelita acertou em cheio com a customização. Romeo, um nome que Maga nunca pronunciou.

O “meu” romance findou logo o pai Capuleto notara-me rondando a vizinhança. Cerrou as janelas da casa, obrigou as irmãs carolas a substituírem a igreja do bairro por uma do outro lado da cidade. Já eu precisava voltar ao Rio para prestar Direito. Nunca deixei-me perder a paróquia nem o casaco amarillo. Não esqueci a chica

Maga foi meu primeiro caso de observação amorosa.